O Brasil trata bem seus imigrantes?
Impera no Brasil o mito de um país cordial e receptivo aos imigrantes. No entanto, a alta de casos de xenofobia e falhas na implementação de políticas públicas põem em xeque essa crença

“A gente vivia de refeição em refeição. Tomávamos café sem saber o que íamos almoçar. Era uma situação que não desejava para mim e meus filhos”, conta Rosa Bravo, venezuelana que emigrou para o Brasil em 2017 por conta da crise em seu país de origem. Grávida de 8 meses e com um filho de um ano, ela e o marido vieram de carona até a fronteira e entraram no país por Pacaraima, cidade em Roraima na divisa com a Venezuela.
No século 21, o Brasil testemunhou uma alta no fluxo de imigrantes: um aumento de 322,7% entre 2010 e 2014. A chegada de migrantes ocorreu em três ondas: os haitianos vieram em 2010, os sírios em 2013 e os venezuelanos em 2018. Atualmente, muitos cubanos estão vindo para o Brasil. Segundo dados do Ministério da Justiça, o país abriga 2.297.547 de estrangeiros, o que corresponde a cerca de 1% da população.
A coordenadora do Observatório das Migrações da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Glaucia Assis, afirma que o Brasil não era o destino preferencial desses imigrantes, mas o endurecimento de regras para imigração nos Estados Unidos e Europa e a possibilidade de obter documentos no país, como a carteira de trabalho, contribuíram para uma mudança de rota.
“Eles também têm no imaginário o Brasil como um país receptivo e cordial, conforme narrado nas novelas”, acrescenta a pesquisadora.
Lei é robusta, mas falha
Com a chegada de grupos mais numerosos de imigrantes, a política migratória do país teve que se atualizar para dar uma resposta a esse movimento. Em 2017, o então presidente Michel Temer sancionou a nova Lei de Imigração, que prevê direitos como acesso aos serviços públicos, como educação e moradia, além de inclusão social e laboral.
A medida substituiu o Estatuto do Estrangeiro, uma norma editada no período da ditadura militar que criminalizava a migração e considerava os imigrantes uma questão de segurança nacional. Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR), João Jarochinski, a mudança, somada à Lei de Refúgio, representa a proteção dos direitos humanos no país.
“É uma lei bastante protetiva no sentido de que as pessoas podem chegar aqui sem documentação, justamente para que se possa ofertar alguma dinâmica de acolhimento”. Para ele, a lei brasileira é mais avançada do que a de outros países. “O Brasil tem inclusive se utilizado disso como um ativo de política externa”.
Mas apesar das leis, falta no país uma rede de atendimento integrada entre estados e municípios para acolher e encaminhar os imigrantes. “Eu queria conhecer o gigante da América Latina, meu marido disse que o brasileiro tinha sensibilidade”, conta Rosa. Sem dinheiro e sem orientação sobre como se regularizar no país, Rosa e o marido armaram uma barraca em uma praça onde passavam a noite com o filho e tentavam vender peças de artesanato para levantar recursos.
“As pessoas não estavam muito receptivas, não queriam ter muito contato com a gente. Foi o processo mais difícil para mim, estava vulnerável, até porque eu nunca havia passado por uma situação como essa de dormir na rua, nunca em meu país, mesmo com uma crise tão difícil”.
Sociedade civil
Diante desta lacuna no atendimento, organizações da sociedade civil e religiosas assumiram esse papel. Uma das referências nesse setor, desde os anos 1970, é a Cáritas, órgão ligado à Igreja Católica com 198 escritórios. Além de programas para oferta de roupas, alimentos, água e produtos de higiene, essas organizações também orientam os imigrantes sobre a regularização e seus direitos.
Ao chegar a Manaus, no Amazonas, um outro imigrante venezuelano alertou a Rosa que ela tinha de protocolar um pedido de refúgio. “Perguntei como é isso? Ele disse que algumas organizações ajudavam os imigrantes e me deu o endereço da Cáritas e do ACNUR [Agência da ONU para Refugiados]. Foi então que recebi a informação sobre onde tinha que ir e os documentos necessários. Doaram roupas, brinquedos e até dinheiro”. Foi assim que ela ingressou com o pedido de refúgio e tirou a carteira de trabalho.
“Entendemos que o nosso papel não é só de realizar serviços de atendimento, mas principalmente mobilizar para que o governo assuma esse papel”, diz a coordenadora nacional da Cáritas, Cristina dos Anjos. “A lei por si só não resolve a situação. Porque acolher é muito mais do que só você deixar as pessoas entrarem, você tem que organizar muitas ações para dar conta de responder às necessidades dessas pessoas”.

Dificuldades de integração
Cerca de 553.114 (24%) dos imigrantes no Brasil estavam alocados no mercado de trabalho formal em 2024, sobretudo em setores como abate de aves, frigoríficos, restaurantes e construção civil. Um levantamento da ONG Visão Mundial divulgado no ano passado mostrou que 67,4% dos imigrantes estão empregados no mercado informal. Desses, 85,3% não trabalham na área de sua formação.
“Esses imigrantes vão para setores da economia de trabalho muito pesado, e que muitas vezes a mão-de-obra é de grande rotatividade e nem os próprios brasileiros querem trabalhar”, afirma Assis.
Outro gargalo é em relação à revalidação de diplomas, cujo prazo para ser emitido pelas universidades é de cerca de 6 meses. O custo também é alto e varia conforme a instituição. Algumas chegam a cobrar R$ 5 mil pelo serviço.
Os imigrantes também têm direito a serem atendidos pela rede de Assistência Social e no Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, os especialistas afirmam que os profissionais que atuam nesses locais não são treinados com uma perspectiva multicultural e o idioma se soma a essas barreiras.
Esse aumento na pressão por serviços públicos e uma possível concorrência por vagas de trabalho estão presentes em discursos de preconceito contra os imigrantes que desembarcam no Brasil. “Esse aumento só reforçou a incapacidade desse sistema para atender as demandas de um local que tem o crescimento populacional”, aponta João Jarochinski.
No entanto, segundo o pesquisador, os governantes usam dessa conjuntura para alegar que a imigração é a causa desses problemas sociais. “Obviamente que é muito confortável para a classe política responsabilizar um grupo que ainda não pode votar”.
Glaucia Assis acrescenta que essa visão é mais pronunciada entre grupos de direita. “Esses partidos se apoiam em um nacionalismo exacerbado para criar um outro que seja identificado como inimigo, razão de todos os males, o que dificulta o diálogo intercultural e aumenta o estigma e o preconceito”.