A franquia mais pop do cinemão hollywoodiano segue impecável em M3GAN 2.0
Gerard Johnstone evolui sua criação e abraça novas referências sem perder a esperteza

O que faz uma mãe? A pergunta pode parecer simples, por estar tão enraizada em nosso conceito de humanidade – a mãe, para muitos de nós, é a primeira figura que conhecemos e entendemos, até funcionalmente falando –, mas as respostas têm ramificações surpreendentes.
“Uma mãe protege”, diriam alguns. Mas proteção, em um mundo por vezes tão perigoso, presume violência, e violência nem sempre é um conceito que se conecta confortavelmente à maternidade em nosso imaginário. “Uma mãe ensina”, “uma mãe se preocupa”, “uma mãe guia”, “uma mãe prioriza”. Ideias primárias e absolutas, que muita gente defende com unhas e dentes e trata como a pedra fundadora da humanidade – mas também ideias que deixam pouco respiro, veja só, para o humano.

M3GAN 2.0 é um filme sobre maternidade. E há quem vá dizer que o primeiro M3GAN, de 2022, já explorava o tema, mas… será mesmo? Sim, Gemma (Allison Williams) criou a boneca biônica do título como uma forma de evitar suas responsabilidades parentais após a sobrinha Cady (Violet McGraw) ficar órfã, mas eu diria que M3GAN era na verdade sátira de horror sobre como o século XXI nos ensinou a evitar emoções reais caso elas não sejam mediadas por uma tela ou algum tipo de narrativa.
É mais fácil fazer M3GAN cantar uma versão a capella de “Titanium” para sua sobrinha do que de fato conversar com ela sobre o luto. Na verdade, olha só que maravilha: se você colocar tudo no campo das ideias, das histórias, nada mais precisa ser real ou difícil.

Em M3GAN 2.0, no entanto, o buraco é ainda mais embaixo. Aqui, Gemma aprendeu que não pode mediar suas emoções, ou as de Cady, através de um androide – e que não pode terceirizar o trabalho duro de criar a sobrinha, seja no campo prático (levantar cedo para levá-la à escola, por exemplo) ou abstrato (ficar acordada a noite pesquisando sobre a quantidade de açúcar adequada para uma criança de 12 anos).
A personagem de Allison Williams se transforma, assim, de tia folgada a super-mãe, dobrando como mulher de negócios e ativista pelo uso responsável de inteligência artificial. Ela protege, ensina, guia, se preocupa e prioriza, da melhor forma que consegue imaginar… mas não só continua achando que não é o bastante, como também continua falhando de dezenas de maneiras diferentes todos os dias.
É nesse contexto que surge a ameaça de Amelia (Ivanna Sakhno), uma segunda boneca dotada de inteligência artificial, desta vez criada e empregada pelo governo estadunidense em operações militares. A androide, é óbvio, eventualmente se rebela contra os seus mestres.
Uma vez independente, começa a eliminar todos os responsáveis pela criação do seu código, e portanto capazes de destruí-la – o que a leva de volta a Gemma e Cady, já que o protótipo original de M3GAN foi a base para sua criação. Quando as protagonistas se vêem em fuga tanto desta nova IA quanto das autoridades dos EUA, descobrimos que M3GAN está viva, escondida no sistema operacional da casa inteligente de Gemma, e que ela ainda está disposta a ajudar na proteção de Cady.
Dificilmente alguém teria duvidado, quando M3GAN 2.0 foi anunciado, que o filme trataria a bonequinha original de volta. Fenômeno de marketing, a personagem interpretada espetacularmente por Amie Donald (dublê de corpo) e Jenna Davis (voz) se tornou uma daquelas vilãs de terror carismáticas que deixa o público salivando por um arco de redenção.
Sua versão de Exterminador do Futuro 2, ou de A Noiva de Chucky. Assumindo também o roteiro dessa sequência, o diretor Gerard Johnstone está mais do que disposto a dar ao público o que ele quer, mas também prova que tem uma história para contar com essa reversão de moralidade.
Se antes era um aviso sobre a superficialidade dos conceitos contemporâneos mediados pelo artificial, agora M3GAN serve para encarnar os instintos mais básicos da maternidade e expiar a culpa injusta que colocamos sobre eles. Daí, Johnstone reposiciona a relação da androide com Cady e com Gemma, utilizando-a como pivô de uma mudança radical entre tia e sobrinha.
O idealismo da menina, que sente falta de sua companhia de infância, se choca com a desconfiança da Gemma, que ainda não consegue digerir o quanto a literalidade da diretiva “proteger-a-qualquer-custo” de M3GAN também se aplica a ela mesma quando se trata da sobrinha.
Focada em ser uma mãe modelo, a protagonista se esquece que às vezes é preciso sujar as mãos – e M3GAN 2.0 é sua jornada na direção de aceitar essa sujeira, o que significa também, que o filme se diverte muito rolando na lama. Se o original prezava por ângulos elegantes e ambientes corporativos, fragmentando o corpo dos personagens em tomadas para fragiliza-los diante da vilã, aqui a tara é por luzes e reflexos que passam a representar os múltiplos mundos nos quais a realidade se desenrola hoje em dia.
M3GAN 2.0 pode até emprestar certas ideias de Exterminador, Pequenos Espiões e Metrópolis, mas as utiliza para construir o conceito bastante original de que já vivemos em um multiverso, contido em cada tela ou superfície espelhada que nos cerca.
E as preocupações humanas, é claro, se multiplicam junto com essas realidades. M3GAN 2.0 existe, essencialmente, na ideia de abraçar as complexidades feias dos mundos imparáveis que colocamos para girar ao nosso redor, e dos universos imovíveis que existem dentro de nós. Se parece profundo demais para um filme de bonequinha assassina, bom… talvez lhe falte um pouco de imaginação.