Casos recentes de feminicídio escancaram grave cenário de violência contra a mulher
Mesmo com o endurecimento de penas, Brasil registra aumento de casos de feminicídios e de violência contra mulheres; especialistas apontam falhas na proteção, falta de prevenção e urgência de combater conteúdos misóginos nas redes sociais

“Não basta matar a mulher. É necessário que se tenha uma assinatura, como desfigurá-la, esganá-la, deixá-la paraplégica ou desferir facadas”, afirma Fabíola Sucasas, promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo.
A declaração reflete a brutalidade de dois episódios ocorridos recentemente na capital paulista. No sábado, 29, Tainara Souza Santos, de 31 anos, foi atropelada e arrastada por mais de um quilômetro até a Marginal Tietê. O motorista era Douglas Alves da Silva, de 26.
Segundo a Polícia Civil, o crime ocorreu após a vítima sair de um bar no Parque Novo Mundo, zona norte, acompanhada de um rapaz. Ao presenciar a cena, Douglas discutiu com a dupla e, depois, já na rua, jogou o veículo contra Tainara. De acordo com o boletim de ocorrência, ela passou por cirurgia e teve as pernas amputadas devido à extensão das lesões, permanecendo internada em estado grave.

O agressor foi preso no dia seguinte. Segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP), durante a abordagem, feita em um hotel na Vila Prudente, Douglas resistiu e avançou contra um dos agentes, “o que exigiu intervenção policial”, informa comunicado. A secretaria diz que ele foi “atingido e contido”. Foi encaminhado a um hospital, onde recebeu atendimento médico. Em seguida, foi levado à delegacia.
Poucos dias depois, em 1° de dezembro, outro caso chocou a cidade. Bruno Lopes Barreto atirou seis vezes contra a ex-companheira, Evelin de Souza Saraiva, utilizando duas armas ao mesmo tempo. O crime aconteceu dentro de uma pastelaria no bairro Jardim Fontalis, também na zona norte, onde a vítima trabalhava.
A tentativa de feminicídio foi registrada por câmeras de segurança, e a vítima teve de ser socorrida pelo helicóptero Águia da Polícia Militar. Evelin foi levada ao Hospital das Clínicas, passou por cirurgia e segue internada na UTI com quadro delicado. Bruno fugiu após o crime.
Para a promotora Fabíola Sucasas, a agressão contra a mulher é um fenômeno complexo, cujas raízes estão na violência histórica, na desigualdade e na cultura que dita os papéis tanto sociais quanto nos relacionamentos. Na sua análise, o enfrentamento a essa violência exige quatro pilares: prevenção, repressão, proteção e assistência à vítima.
Há 20 anos trabalhando com direitos humanos, Juliana Brandão, advogada e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, reforça o alerta: “Se não voltarmos nossa atenção para a prevenção, continuaremos lidando com o aumento dos casos”. Ela completa: “Como a gente faz para não chegarmos a esse ponto? Essa é uma pergunta para homens e para mulheres”.

Recorde de feminicídios
Os dados corroboram a urgência do tema. O 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado em julho, com registros referentes a 2024, aponta que, a cada hora, 29 mulheres foram vítimas de lesão corporal dolosa no contexto de violência doméstica.
De acordo com o Anuário, o feminicídio teve um aumento pequeno de 2023 para 2024: 0,7% de casos, chegando a 1.492 mortes no país. Ainda assim, é o recorde da série histórica iniciada em 2015. Por outro lado, as tentativas de assassinar mulheres por serem mulheres cresceram 19%, no mesmo período, com 3.870 registros. São números consistentes com a tendência de alta nas ocorrências.
O cenário atual também se mostra agravante. O Ministério da Justiça indicou que, entre janeiro e outubro de 2025, foram registrados 1.184 feminicídios – uma média de quatro vítimas por dia.

A cidade de São Paulo apresenta o maior número de casos em um ano desde o início da série histórica em 2015. Dados da Secretaria de Segurança Pública contabilizam 53 ocorrências entre janeiro e outubro deste ano, sendo julho o mês mais letal, com oito vítimas. No estado de São Paulo, foram 207 casos no mesmo período, com pico de 26 ocorrências em maio.
- É importante esclarecer que o feminicídio foi tipificado em lei federal em março de 2015. Mais recentemente, em 9 de outubro de 2024, a legislação foi endurecida com a sanção da Lei n° 14.994, conhecida como “Pacote Antifeminicídio”, que torna esse crime um tipo penal autônomo e aumenta a pena máxima para 40 anos. Isso se soma à Lei n° 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, que foi um marco no combate à violência doméstica.
Apesar dos avanços legislativos, Fabíola ressalta que as medidas ainda não são suficientes. “O enfrentamento à violência contra mulher precisa ser um plano de Estado. A mudança de governos altera as equipes, e nós do Judiciário perdemos a continuidade do trabalho por falta de um pacto linear”, salienta.
A senadora Mara Gabrilli (PSD-SP) critica a falta de adesão de alguns estados ao pacto de combate à violência e a ausência de planos de metas. “Não basta ter planos se os recursos não chegam onde devem e se não há coordenação entre ministérios, Justiça, segurança pública e assistência social”, afirma. Para a parlamentar, as maiores lacunas estão nas zonas rurais e periferias, onde a oferta de serviços integrados é escassa.
Para alguns especialistas, com o aumento dos casos, fica claro que a violência contra a mulher é um problema estrutural, e não circunstancial. Isso quer dizer que o Brasil não conta com um sistema de proteção que seja capaz de enfrentar esse quadro com eficácia.

A conexão com o discurso de ódio online
Dentre os casos recentes de grande repercussão, a prisão de Thiago Schutz, conhecido como Calvo do Campari, na sexta-feira, 28, chamou atenção para outro aspecto do problema: as redes sociais. Schutz, que ganhou notoriedade com falas ligadas ao movimento Red Pill, foi preso em flagrante por violência doméstica e lesão corporal contra a namorada, Lais Angeli Gamarra. No dia seguinte, passou por uma audiência de custódia. Foi solto.
Para Fabíola, existe uma relação direta entre a disseminação do ódio online e o aumento dos feminicídios, impulsionada por uma política conservadora sobre os comportamentos de gênero. Ela menciona o “efeito backlash”, uma reação que organiza e radicaliza a cultura misógina nas redes sociais.
A ex-deputada federal Manuela d’Ávila concorda, pois, quando a violência ocorre publicamente sem punição, transmite-se um aviso disciplinador às mulheres e uma validação aos homens. “Além disso, a misoginia é lucrativa para perfis como o de Schutz”, acrescenta.
Um estudo divulgado em dezembro de 2024 demonstrou essa relação entre discursos misóginos e lucratividade. Durante seis meses, Luciane Belin, pesquisadora do NetLab, laboratório de pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que se dedica ao estudo da internet e das redes sociais, passou dias vendo, em detalhes, vídeos no YouTube com esse tipo de conteúdo.
Alguns eram mais posicionados contra mulheres, outros mais disfarçados. Esse trabalho é a base de um estudo do Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais, parceria com o Ministério das Mulheres.
“Misoginia não se refere só ao discurso de ódio. Ela vai também no sentido de inferiorização da mulher, da subjugação e do controle, que é o que mais aparece”, conta Luciane, uma das coordenadoras da pesquisa.
O estudo foi encomendado para entender como a misoginia no ambiente digital estava saindo dessas esferas mais fechadas e chegando ao público mais geral. Para isso, na primeira fase, foram utilizadas ferramentas de Inteligência Artificial para analisar 76.289 vídeos e identificar as comunidades e os padrões da “machosfera” brasileira. O trabalho também examinou as formas de monetização e sua relação com o conteúdo misógino e discriminatório.
A pesquisa apontou que, de 2018 a 2024, houve um aumento de canais no YouTube que pregavam a misoginia. Foram identificados 137, que publicaram 105 mil vídeos, atingindo 3,9 bilhões de visualizações. Segundo o relatório, 80% dos canais tinham alguma estratégia para ganhar dinheiro com o que produziam, desde os recursos próprios da plataforma – como anúncios e superchats – até a oferta de cursos, palestras e consultorias (do tipo “como pegar mulheres na balada”) ou pedidos de pix.
O trabalho provoca mais uma reflexão sobre a proliferação do discurso misógino no ambiente digital e sua consequente extensão para a “vida real”. Propagar esse tipo de conteúdo está relacionado à formação de comunidades, que envolvem inclusive os mais jovens. “Existe uma dimensão pedagógica. Há uma intenção de ‘ensinar’ e, com certeza, isso impacta outros homens”, explica Luciane.

Caminhos para a mudança
O enfrentamento da violência contra a mulher demanda múltiplos esforços. Não é possível que se resolva o problema por uma única esfera. No ambiente digital, é vital combater o conteúdo misógino e denunciar comportamentos nocivos. Também é necessário cobrar as plataformas digitais a respeito de seu papel nessa luta.
“Todas têm regras de uso, mas muitos conteúdos são disfarçados. É preciso ter uma regulação e exigir transparência das plataformas a respeito do que fazem com esses canais”, afirma Luciane.
Para Juliana Brandão, evitar que o conflito escale para a agressão exige transcender as políticas de segurança e investir na educação escolar, ensinando a meninos e meninas sobre direitos e igualdade. Isso ajudaria, por exemplo, a diminuir hostilidades. “É preciso o entendimento de que o normal da sociedade é a igualdade”, afirma.
Mara Gabrilli, por sua vez, observa que o tema ainda enfrenta resistência política devido ao termo “gênero”. “O caminho é avançar com programas baseados em evidências, formação de professores e diálogo com as famílias”, sugere.
Manuela d’Ávila relembra a ofensiva da extrema-direita contra a chamada “ideologia de gênero” na última década, o que prejudicou o debate nas escolas. “Uma criança inserida em um ambiente de violência doméstica precisa encontrar na escola um espaço para debater e construir perspectivas alternativas. Caso contrário, não conseguiremos mudar a cultura de violência contra as mulheres”, reforça.
Mais mulheres nas esferas de poder
Para conter o avanço da violência contra mulheres, é necessário aumentar a representatividade nas esferas de poder. Isso vale até para o registro de boletins de ocorrência. A depender da pessoa responsável por ouvir a denúncia de uma mulher, é possível que ela não reconheça a gravidade do acontecido.
“Necessitamos de mais representatividade para garantir que as respostas sejam mais representativas. Se não investirmos em uma cultura que estimule as mulheres a participarem mais da vida pública, a assumirem cargos legislativos e atuarem na esfera executiva ou na magistratura, o cenário não vai mudar”, acredita Juliana.
Para ela, o Brasil tem, de fato, avanços, mas é vital promover essa mudança de cultura e também desenvolver ações mais incisivas, mais direcionadas para enfrentar o avanço do feminicídio e outros crimes contra a mulher.
Juliana destaca que hoje a repercussão dos casos de violência é muito maior do que se via no passado. Isso se reflete, inclusive, no mercado audiovisual – uma das produções mais recentes que toca nessa questão é a minissérie “Ângela Diniz: Assassinada e Condenada”, na HBO Max, que trata do assassinato de Ângela, em 1976, pelo namorado, Doca Street, que alegou “legítima defesa da honra” para justificar seu ato. Na época, ele recebeu uma pena branda.
“Se existe um recrudescimento da cultura misógina, também existe uma resistência que se robustece”, ressalta a advogada. “A gente está letrando mais pessoas, o que gera certa intransigência em aceitar os casos. Eles chocam e mobilizam discussões. Não há o silêncio do tempo em que a violência contra a mulher ficava no mundo privado, no particular. Hoje, ela é um assunto do mundo público”, salienta.



