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Governo Milei chega a um ano com inflação de um dígito, alta popularidade e escalada ideológica

Com respaldo da paciência dos argentinos, o libertário avançou com seu programa de ajuste, mas viu mais da metade da população cair na pobreza; para 2025, ele deve dobrar a aposta no 'déficit zero'

“Para mim o pior já passou”, diz esperançoso o trabalhador mineiro Aníbal Franco, 31, sobre a situação econômica da Argentina. Morador de San António de Los Cobres, uma pequena cidade pobre no norte da província de Salta, ele levou a sério o aviso de seu presidente Javier Milei na posse de que “primeiro ia piorar muito antes de melhorar”.

Agora, exatamente um ano depois, ele espera que os dias difíceis do forte ajuste fiscal do presidente estejam começando a ficar para trás, mesmo com os índices de pobreza no país superando a marca de 50% da população.

Em 10 de dezembro de 2023, Milei tomou posse prometendo uma política de choque brutal. Em nome do déficit zero, ele pediu à sua população que tivesse resiliência durante os complicados meses que estariam por vir. Os seus números de aprovação após um ano mostram que a população lhe deu o que foi pedido e agora acredita estar vendo os primeiros frutos da aposta total no desconhecido.

“Ele está cumprindo tudo o que prometeu na campanha”, observa Franco. “[A política de ajuste] nos custou muito, a todos os argentinos. Chegamos apertados ao fim dos meses. Subiram os alimentos, as verduras e as frutas. Tudo subiu em certo momento. Mas, com isso, ele pode cumprir muitas coisas”.

Franco já havia conversado com o Estadão em outubro de 2023, nas vésperas do primeiro turno das eleições. Na época, justificou seu voto em Milei alegando o abandono pelo Estado argentino ao seu povoado do norte, rico em minério. Hoje, acha que acertou ao ter escolhido o lado dos libertários, mas reconhece que ainda há muito que melhorar.

Preços estabilizados

O primeiro ano de Javier Milei na Casa Rosada surpreendeu até os analistas mais otimistas. De uma inflação mensal de 25% em janeiro deste ano, a Argentina teve no mês de outubro, último disponível, uma taxa de 2,7%. Muitos economistas não acreditavam que era possível um dígito ainda esse ano, mas ele veio já na metade do período.

“Na prática, para o cidadão comum, o que isso significou foi perceber que nas prateleiras do supermercado ou nas compras diárias, os preços estão muito mais estabilizados e vemos poucos aumentos durante o mês”, explica o economista Juan Manuel Telechea. Não que os preços tenham abaixado, mas ao menos pararam de subir exponencialmente.

“Não é que a Argentina entrou no regime de baixa inflação dos países vizinhos, como Brasil, Peru, Uruguai, Colômbia, que são países que mantêm uma inflação anual de um dígito. Ainda falta muito para isso”, observa o economista da UBA (Universidade de Buenos Aires) Fabio Rodríguez.

Outro feito que Milei celebra é praticamente um ano inteiro de superávit fiscal, algo que não acontecia no país há mais de uma década. Eliminar o déficit, ajustar a política monetária do Banco Central e controlar o câmbio foram as medidas que viabilizaram a queda da inflação, explica Rodríguez.

Outra forma de controle foi conter o consumo, um remédio mais amargo. Com a inflação galopante do início do ano e com salários congelados, os argentinos pararam de consumir – com momentos em que era preciso escolher entre alimento e remédio – e isso fez com que a circulação da moeda diminuísse.

Essa já não é a realidade agora. Os alimentos foram os primeiros a ver uma redução da inflação, desafogando o aperto das famílias. Mas os serviços ainda seguem altos e os salários estão longe de recuperar seu poder aquisitivo.

Pobreza e humor social

A contrapartida destes e de outros dados econômicos positivos é o aumento de um dado alarmante: a pobreza. Depois da mega desvalorização do valor do peso em dezembro – e com o aumento de preços correndo acima de 25% – mais da metade dos argentinos entraram para a estatística de pobres.

Segundo dados do Indec (Instituto de Nacional de Estatística e Censo), o primeiro semestre do ano fechou com 52,9% dos argentinos abaixo da linha da pobreza. Desses, 18,1% eram considerados indigentes, ou seja, não tinham o suficiente para comprar os artigos da cesta básica.

Este indicador se torna ainda mais dramático quando considerado que a maioria dos pobres do país é de crianças e adolescentes. Entre os argentinos de 0 a 14 anos, a taxa de pobreza é de 66%.

“A pobreza aumentou, a indigência aumentou, estão em níveis muito similares ou até superiores aos da crise de 2001, o que demonstra que é um modelo econômico que, apesar dessa estabilização da inflação e do câmbio, não gerou uma melhor redistribuição ou um reparto mais equitativo dos bens e serviços que produz uma sociedade, mas sim um modelo econômico que gerou maior desigualdade e iniquidade”, observa o analista político do Observatório Pulsar da UBA, Facundo Cruz.

Era este o indicador que poderia significar a Milei um fracasso de sua política de ajuste. O temor de analistas, agências de risco e até do FMI (Fundo Monetário Internacional) – com quem a Argentina tem uma dívida bilionária – era de que uma piora na condição de vida das pessoas levasse a uma ebulição social. Por mais de uma vez, o FMI alertou para que Milei seguisse com seus planos, mas “cuidasse do social”.

Com esses alertas, o governo federal seguiu apertando em sua política de austeridade, mas se atentou em manter os programas sociais e promoveu reajustes consideráveis em seus valores para que não fossem engolidos pela inflação galopante.

Essa manutenção do social somado ao alerta inicial do libertário de que haveria uma piora de condições fez com que parte dos argentinos o premiassem com a paciência que tanto pedia. “O governo conseguiu instalar muito habilmente que isso era uma consequência inevitável dos desequilíbrios que herdou [dos governos anteriores] e das medidas que teve que tomar para começar a ajustá-los. Ele pediu paciência e tolerância e a sociedade de alguma forma lhe concedeu, ou pelo menos até agora”, afirma Fabio Rodríguez.

No passado, lembra Rodríguez, todo governo que falou em ajuste fiscal sofreu muito com o humor social. Um exemplo foi Mauricio Macri que perdeu a disputa por um segundo mandato. Não foi o caso de Milei que hoje, um ano depois, guarda uma taxa de aprovação acima dos 50% e se configura entre os líderes mais populares da América Latina, junto com Luis Lacalle Pou do Uruguai, Lula no Brasil e Daniel Noboa no Equador, segundo várias consultorias de opinião pública.

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