Brasil apreende só 3% da droga que entra no país via Rota do Solimões
Fronteira desguarnecida faz com que tráfico percorra rios da Amazônia com baixo risco, escoando grandes volumes de droga pelo Rio Solimões

Estimativas de especialistas em segurança pública dão conta de que apenas 2% a 3% da cocaína produzida no Peru e na Colômbia, nossos vizinhos, e enviada para o território nacional, seja apreendida na Rota do Solimões, na Amazônia, que hoje tem a hegemonia do Comando Vermelho (CV).
O volume é estimado a partir de imagens de satélites das áreas de plantio de coca em países vizinhos, que contam até com variedades adaptadas ao úmido clima amazônico e não são mais produzidas exclusivamente nas encostas dos Andes.
Pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Cesar Mello diz que é sempre difícil mensurar as quantidades de droga produzida, mas explica a maneira como se chega a essas proporções. “Usando qualquer metodologia de cálculo, percebe-se que a produção gira em torno de milhares de toneladas enquanto as apreensões ficam em menos de uma centena”, diz.

Na prática, a fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia só existe nos mapas. A vida real mostra que não há qualquer tipo de controle no acesso aos rios da região do Alto Solimões, uma área de 96 mil quilômetros quadrados, equivalente ao território de Portugal, e com intensa atuação do crime organizado.
Por exemplo, entre Tabatinga, no Brasil, e Letícia, na Colômbia, não há posto das Forças Armadas, aduana ou qualquer órgão de fiscalização de práticas criminosas. Transita-se livremente entre os dois países. A tríplice fronteira é formada ainda pela ilha peruana de Santa Rosa, acessível com qualquer canoa, sem abordagem de autoridades de segurança.
Segundo as autoridades, a cocaína é transportada, muitas vezes, nessas pequenas embarcações, que promovem um vaivém frenético pelo Solimões, rios e igarapés da região.
Ao longo do Rio Javari, um curso d’água que serpenteia por mais de 1.000 km de extensão, na fronteira com o Peru, qualquer um pode cruzar de uma margem a outra sem ser incomodado e o patrulhamento é exercido na prática pela Polícia Militar do Amazonas, com 156 integrantes no Batalhão de Tabatinga.
As Forças Armadas contariam com um efetivo de cerca de mil homens na região da tríplice fronteira, que ficariam restritos a atividades que não incluem patrulhamento e abordagem de criminosos. Como disse um policial, só atuam se “cair no colo”.

Como funciona
Segundo uma autoridade, anteriormente, os traficantes pagavam a droga somente após o recebimento. Muitos ficavam devendo aos fornecedores e, quando a dívida se tornava impagável, rumavam até os países vizinhos para assassinar o credor, quem tinha fornecido o entorpecente.
Inadimplência e assassinato fizeram os fornecedores mudarem a estratégia. Ou seja, os traficantes pagam antecipadamente e só depois a droga é embarcada para o Brasil.
Como ficam com medo de perder a cocaína pela qual já pagaram, os traficantes contratam a segurança para descer o Solimões. É o chamado “imposto” (equivalente ao pedágio) para cruzar determinado trecho do rio. Por exemplo, de Tabatinga a Coari, um grupo escolta a carga. De Coari a Manaus, outro. E assim segue o barco, muitas vezes até Belém e Macapá, de onde a cocaína segue para a Europa.
Traficantes de uma mesma facção ou integrantes de grupos independentes passaram também a formar consórcios da droga, utilizando as mesmas embarcações com suas cargas devidamente separadas, identificadas por símbolos. É uma forma de baratear os custos e dividir os riscos.
As drogas não são os únicos produtos transportados por traficantes, que estão embrenhados em todo tipo de crime, como pesca predatória, extração de madeira e, principalmente, ouro de garimpo ilegal.

Desafios
A complexidade de se fazer policiamento na região do Alto Solimões tem, por óbvio, proporções amazônicas. São 1.430 km de fronteira somente com o Peru, mais 1.644 km com a Colômbia. Como comparação, a fronteira dos Estados Unidos com o México tem 3.145 km. “[Nos EUA] fronteira seca, policiada, com muro em quase toda ela. E, assim mesmo, lá adentra o entorpecente”, diz major da PM Diego Magalhães, subsecretário de Operações.
A situação é tão complexa que o próprio deslocamento da droga obedece o regime de cheias e vazantes dos rios. Quando o nível está mais elevado, traficantes costumam usar principalmente as embarcações para escoar a droga, aproveitando-se de atalhos (furos). Na seca, muitos ainda se arriscam pelas rotas fluviais, mas é o transporte aéreo que cumpre o papel de levar a cocaína mais adiante.
O CV é o grupo hegemônico, mas não exerce o monopólio do crime na região. A facção do Rio de Janeiro assumiu a preponderância no Amazonas ao acabar com seus antigos aliados da Família do Norte (FDN), impedindo também a ascensão do PCC, que é mais forte em Roraima, estado vizinho.

A facção nascida em São Paulo tentou cooptar o também extinto grupo chamado de “Crias”, na fronteira, mas predomina hoje em apenas quatro municípios amazonenses, sendo o principal deles Coari, no meio do caminho entre Tabatinga e Manaus. Para isso, contou com a ajuda dos “piratas”, quadrilhas formadas em muitos casos por PMs, que assaltam embarcações e revendem a droga roubada.
De toda forma, é fácil notar a preponderância do CV na região de fronteira, onde é comum encontrar pichações por todo lado com as inscrições da facção do RJ. Isso até mesmo na colombiana Letícia, onde é “tudo 2” – residentes de áreas sob atuação dos criminosos fazem o sinal com os dedos indicador e médio levantados, um dos símbolos da organização criada no RJ.