Crítica

“A Noite Sempre Chega” transforma a miséria em thriller

No filme da Netflix, elenco convence onde roteiro e direção deixam a desejar

Em 2014, Marion Cotillard recebeu uma (merecida) indicação ao Oscar por seu papel no filme belga Dois Dias, Uma Noite, dirigido pelos sempre prestigiados irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne. Na trama, ela vivia Sandra, funcionária de uma fábrica de painéis de energia solar, que tinha um fim de semana (dois dias, uma noite) para convencer seus colegas de time a rejeitar um bônus oferecido pelo chefe em troca da demissão dela.

Abordado no estilo cinema verité que consagrou os irmãos Dardenne em festivais europeus, o longa colocava uma lupa realista sobre a precariedade do mercado de trabalho no capitalismo tardio, confiando nas situações e nas atuações para transmitir o desespero que guia muito daquele fim de semana para Sandra. O resultado é um grande filme.

A Noite Sempre Chega é a versão Hollywood dessa história – não oficialmente, é claro. Inspirado no livro de mesmo nome, publicado em 2021 por Willy Vlautin, o novo longa da Netflix mostra Lynette (Vanessa Kirby) atravessando a cidade de Portland (EUA) a fim de conseguir, em uma única noite, o dinheiro necessário para pagar o empréstimo que permitirá que ela e a família (a mãe, vivida por Jennifer Jason Leigh; e o irmão, portador de síndrome de Down, interpretado por Zack Gottsagen) mantenham posse da casa onde moram. Um prazo mais curto, e até por isso um confronto mais óbvio com a insegurança monetária e de moradia que caracteriza a vivência de tantos no século XXI. Mas troque os nomes e aumente o volume, e pronto: você tem o mesmo filme.

A diferença, claro, é que A Noite Sempre Chega é feito à moda estadunidense de não confiar demais na inteligência ou na atenção do seu público. Por isso o roteiro, assinado por Sarah Conradt (Instinto Materno), não espera muito para colocar Lynette diante de decisões mais radicais. E o efeito é curioso: embora as indignidades que ela encontra sejam mais óbvias, e seu confronto com a ilegalidade diante da soma absurda (US$ 25 mil) que precisa reunir em um período tão curto de tempo seja mais intenso, A Noite Sempre Chega perde em identificação. Some o constrangimento pulsante de necessitar da bondade alheia, e o dilema moral impossível de entender que nem sempre a bondade é uma opção para os outros, e entra em cena uma espiral manufaturada de ações cada vez mais extremas diante de um problema insuperável.

Em suma: A Noite Sempre Chega é um thriller, no sentido muito mais tradicional da palavra. O diretor Benjamin Caron (vencedor do Emmy por The Crown) certamente o conduz dessa forma, registrando as pontes, arranha-céus e subúrbios de Portland com um verniz brilhante até um pouco óbvio diante da sua ambientação majoritariamente noturna.

Elegância é o forte do cineasta, e sua condução é irrepreensivelmente segura durante as breves explosões de adrenalina do filme – mas parece que ele pensou pouco no tipo de história que estava contando, de fato. Sobra para o elenco, portanto, nos convencer da realidade palpável desses personagens e das situações que eles enfrentam, mesmo diante da artificialidade da jornada em que eles são colocados.

E é verdade, no fim das contas: Vanessa Kirby é perfeitamente capaz de levar um filme como esse nas costas. Assim como fez em Pedaços de Uma Mulher (2020), ela demonstra aqui um comando absoluto da sua personagem, uma capacidade hercúlea de manter emoções veladas por trás dos olhos sem fazer com que a performance aliene o espectador. Sempre sentimos que estamos com ela, e as explosões quietas que ela arquiteta no terceiro ato do filme nunca soam falsas ou histriônicas. Existe um desejo real em sua Lynette, um esforço de conter os danos que ela sabe ser capaz de causar, por conta dos danos que foram causados a ela – uma performance, de certa forma, que espelha muito a de Stephan James em outro filme recente sobre miséria, o superior Ricky.

Que o próprio James seja um dos coadjuvantes que ajudam a manter A Noite Sempre Chega dramaticamente de pé até o final só evidencia o quanto o filme confia em seus atores para fazer o que não consegue: transformar suspense hollywoodiano em drama real.

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