“Cloud” impõe a personagem e ao público um impactante chá de revelação
Kiyoshi Kurosawa brinca com os códigos do noir para nos tirar da alienação

Nenhuma experiência é individual mas algumas são mais coletivas que outras. É o que aprende o jovem Ryosuke Yoshii (Masaki Suda) quando decide abandonar seu emprego numa fábrica em Tóquio para ser empreendedor em tempo integral, revendendo online com valores inflacionados os produtos que ele compra no atacado, de bolsas finas a bonecos colecionáveis. Não é uma atividade segura e exige cautela, mas Cloud – Nuvem de Vingança vai de suspense de paranoia a filme de ação sem que Yoshii se dê conta disso.
À primeira vista, o diretor Kiyoshi Kurosawa parece estar se filiando a um tema recorrente do capitalismo tardio, uma trama de perseguição que permite nos vingar dos novos ricos e dos aproveitadores que nos exploram, em chave sádica próxima de filmes como O Menu e séries como The White Lotus. As facilidades do discurso moralizante não parecem interessar ao cineasta, porém, e Cloud se afiança ao ponto de vista de Yoshii para desenvolver uma narrativa mais preocupada com os efeitos da alienação.

Porque Ryosuke Yoshii é acima de tudo um alienado, na medida em que se mostra apartado de todos os vínculos que as pessoas ao seu redor reivindicam: a namorada consumista, o melhor amigo invejoso, o funcionário jovem e dedicado. Yoshii só tem olhos para o brilho do monitor quando coloca seus produtos à venda, cenas que Kurosawa encena sem pressa com sua melhor austeridade.
No plano/contraplano do monitor e do rosto de Yoshii estão nada menos que o homem e o mundo, o tudo e o nada contidos na tela do computador. Especialista nos mal-estares da contemporaneidade, o cineasta volta a tratar a Internet como um vácuo impessoal que canaliza nossos pesadelos, a exemplo da sua obra-prima Pulse (2001).

Cloud não tem nada de sobrenatural como Pulse, porém, a despeito das sugestões que Kurosawa instila na primeira metade do filme, cercando Yoshii de vultos, sombras e sons que sugerem presenças inexplicáveis. A virada para o filme de ação – com correria e tiroteios encenados com quase indolência, ditando um compasso e um olhar reflexivos sobre a violência, à moda Hamaguchi em O Mal não Existe (2023) – desfaz a impressão do sobrenatural. São plenamente reais as consequências dos nossos atos em Cloud, o que não significa que sejam triviais, especialmente no que diz respeito ao impacto que eles geram sobre Yoshii.
Opera-se no protagonista um despertar pelo trauma, e a alienação dá lugar à revelação, uma guinada de percepção que mimetiza e acompanha a virada tremenda que fez de Cloud primeiro um suspense atmosférico e depois um banho de sangue.

Não é a primeira vez que Kurosawa se filia ao cinema de gênero em busca das catarses que lhe sejam justas e naturais (até na ficção científica de invasão alienígena ele já procurou essa metanarrativa), mas Cloud se diferencia pela forma dedicada com que torna seu protagonista o sujeito privilegiado desse testemunho. Quem esperava o sadismo e a lição do nós-contra-eles vai encontrar um filme determinado a fazer com que a experiência transformadora de Yoshii seja, sim, individual.
Se considerarmos que o filme noir americano ajudou a consagrar o psicologismo que se tornou norma no cinema moderno a partir dos anos 1940 – por trás de cada gesto dos personagens há um mundo de embates mentais, simbolismos, bagagens do passado – então Kurosawa faz de Cloud um noir típico. Isso já aparece inscrito nos jogos de luz e sombra que ele filtra por janelas e portas; vez ou outra a luz das janelas ao fundo aumenta ou diminui para denotar flutuações de humor nas dinâmicas entre personagens. Se Yoshii se aliena, isso não impede o mundo de se mover velozmente, mutável, como percebemos nos planos de deslocamento, em motos ou ônibus.

De forma expressionista, ao estado mental do personagem corresponde a instabilidade material do mundo, outra lógica do noir que Kurosawa respeita, até o plano derradeiro do filme. Ryosuke Yoshii parece inabalável, o semblante frio do jovem determinado a tomar o futuro nas mãos, mas por dentro e por fora uma revolução está prestes a golpeá-lo. Assistimos com assombro a todos os movimentos desse golpe muito antes que Yoshii o perceba.
A isso poderíamos até dar o nome de empatia – não uma superioridade nossa a respeito da moral obviamente condenável do personagem mas uma conexão sensível estabelecida entre espectador e protagonista a partir do rigor com que Kurosawa elege a perspectiva de Yoshii como organizadora da sua dramaturgia. Quando surge, a mulher fatal do noir se presta mais a uma piscadela autorreferente do que como um tropo necessário à trama: já sabíamos há muito tempo que ela se revelaria assim, e que seja autoevidente para todos, menos para Yoshii, só sublinha a alienação do personagem.
Compramos a ideia, por óbvia que ela seja, porque afinal o que Kiyoshi Kurosawa está fazendo, mais do que elaborar eventuais reviravoltas para golpear o espectador, é colocar a psicologia de volta nos thrillers psicológicos.