Crítica

“Superman” usa herói original para iniciar uma nova era de super-heróis no cinema

Com David Corenswet no papel principal, filme abraça sem reservas a natureza do seu protagonista

Os títulos que surgem na tela nos primeiros segundos de Superman rapidamente nos informam das circunstâncias do novo Universo DC (DCU). Seres dotados de super habilidades, chamados de meta-humanos, surgiram no planeta há 300 anos.

Há 30 anos, uma nave do planeta Krypton caiu na fazenda dos Kents enquanto carregava uma criança. Há três anos, a criança que estava ali – agora adulta – se apresentou como o Homem de Aço. Há três horas, ele iniciou uma luta. E, há apenas três minutos, esse herói sofreu algo que, até então, ele desconhecia: uma derrota.

Imediatamente, o filme dirigido e escrito por James Gunn nos joga na ação de uma maneira melhor descrita como a sensação de abrir, digamos, Superman #19 sem ter lido os dezoito capítulos anteriores do quadrinho, mas conhecendo o básico sobre Clark Kent. A história, durante sua frenética meia hora inicial, faz um bom trabalho de preencher as lacunas, mas este começo é um que supõe um conhecimento prévio, da parte do público, de quem é o Superman – e, mais importante, do que é um filme de super-heróis.

Responsável por fazer quatro dos melhores longas deste tipo nos últimos 10 anos, Gunn não quer gastar tempo com origens, preparo de terreno e apresentações. Você sabe o que veio assistir. Bem-vindo ao DCU.

É uma atitude que eventualmente trará consequências para um filme que (por mais que seu diretor, também CEO do novo DC Studios, prefira não falar tanto disso) precisa dar o pontapé inicial numa iniciativa cinematográfica que vai muito além do protagonista. Começar a nova cronologia assim traz riscos, e alguns ficam aparente de cara. Essa aposta, porém, também inaugura um novo tipo de abordagem nesse gênero tão cansado.

Em tom e estrutura, Superman é um filme de HQ tão sem vergonha disso, e tão pouco interessado em operar pelas regras que outrora buscaram tornar esses personagens mais palatáveis para o grande público, que é difícil não se impressionar com essa ousadia. Demorará alguns instantes para se orientar, e isso pode ser demais para espectadores mais causais. Por outro lado, para quem lê e assiste essas narrativas há anos, senão décadas, Superman rapidamente se torna eletrizante.

De volta ao texto de abertura – apenas uma das várias maneiras com a qual esse filme se parece mais com Star Wars do que com a Marvel –, descobrimos que, há três semanas, o Superman de Metrópolis, interpretado com carisma imediato por David Corenswet, impediu a invasão da nação fictícia de Borávia, aliada dos Estados Unidos da América, pela igualmente imaginada Jahanpur. Ninguém morreu, ou sequer teve lesões graves, enquanto o kryptoniano impediu o conflito (um mix de Rússia/Ucrânia e Israel/Palestina) de avançar, mas ramificações políticas fizeram os cidadãos norte-americanos questionarem as ações de seu defensor pela primeira vez. É, em outras palavras, a oportunidade perfeita para Lex Luthor (Nicholas Hoult) colocar em ação um plano para eliminar a reputação, e depois a vida, do alienígena.

Luthor é abertamente contrário ao Superman, mas até Lois Lane (Rachel Brosnahan, um tiro de adrenalina no papel) tem dúvidas sobre as ações de Clark. Gunn encena essa dinâmica com uma entrevista entre a repórter e o herói que também funciona como a primeira briga do casal (aqui, ela já sabe quem ele é), e mostra não só como Superman está interessado no lado humano do personagem da DC, mas  também como, acima de tudo, esse é um filme de atuações. Corenswet, quase milagrosamente, faz um Clark mundano sem jamais perder sua estatura moral, e encontra em Brosnahan uma parceira de cena afiada o suficiente para gerar desde química sexual até embates filosóficos.

Em paralelo, Hoult interpreta o vilão, que se enxerga como o ápice da humanidade mas tem um ego frágil, com o equilíbrio perfeito entre o genial e o acriançado, e é esse trabalho que faz a revelação da verdadeira motivação de Lex funcionar tão bem que é impossível não declará-lo, imediatamente, como a melhor encarnação live-action dessa figura.

É através de Lex, também, que Gunn insere o que parece ser um dos temas deste primeiro capítulo do DCU (afinal, a ideia estava presente até em Comando das Criaturas): a quantidade de meta-humanos presentes na Terra. Trata-se de outra jogada metalinguística, uma que parece reconhecer a multiplicidade de filmes e séries deste tipo em existência, e uma que quase sai pela culatra quando o filme apresenta quatro coadjuvantes poderosos.

Felizmente, o texto de Gunn e a realização visual de seus poderes deixam o Sr. Incrível (Edi Gathegi) e Lanterna Verde (Nathan Fillion, hilário) empolgantes em suas cenas, e a realização visual do Metamorfo de Anthony Carrigan compensa o quão simples são seus dilemas. A Mulher-Gavião de Isabela Merced é a que mais sofre com o pouco espaço que lhe sobra, mas as preocupações com a quantidade de personagens – ainda nem mencionamos Jimmy Olsen (Skyler Gisondo), Eve Teschmacher (Sara Sampaio) ou a Engenheira (Maria Gabriela de Faria) – não se mostram tão necessárias, no fim das contas. Cada um tem o tempo que deve ter.

O que não quer dizer que Superman, eventualmente, não se perca por tentar segurar coisas demais na mesma mão. Se o número de personagens é aliviado pela qualidade de diálogos e da direção de arte, é o uso de múltiplas linhas narrativas no segundo ato que mais faz o filme sofrer, separando demais as peças do tabuleiro ao ponto de que ninguém parece ficar tempo o suficiente no holofote para que tenhamos com quem nos agarrar. Há tramas e subtramas para todo lado, e Superman se revela curiosamente semelhante a Guardiões da Galáxia Vol. 2 nesse sentido.

Este filme, como aquele, tropeça quando perde o foco por tratar o segundo ato como mais um momento para apresentar ideias e conceitos narrativos, e não avançar o que já foi estabelecido. Mas este filme, também como aquele, reconquista sua força na reta final, quando une isto tudo em sequências de ação grandiosas e confrontos dramáticos de ponta no último terço, uma sequência de cenas sensacional em diversas frentes. Na mão de Gunn, o vai-e-vem das discussões ferrenhas entre Clark e Lex é tão importante quanto a troca de socos do herói com o misterioso Ultraman.

Isto, aliás, é o que reforça a grande verdade de Superman. Se os filmes de Richard Donner enxergavam o herói romantizado de Hollywood, e os de Zack Snyder viam no extra-terrestre uma figura messiânica que sofria com o fardo de sua existência, James Gunn encara o Superman, antes de tudo, como uma pessoa. Você ouvirá o nome Kal-El aqui e ali neste filme, mas Clark será usado mil vezes mais. Essa preferência é refletida no desenrolar do enredo, um que encontra seu protagonista como alguém com medos, paixões e vontades. Alguém com um cachorro (Krypto é tão divertido quanto prometido), um namoro ainda incerto, um emprego, pais orgulhosos e rivais de todo tipo.

As melhores versões do Superman são aquelas que entendem a essência de sua criação. O que o torna interessante não são as dúvidas sobre sua capacidade de vencer um inimigo – é claro que ele consegue – mas o quanto ele deseja não estar sozinho. Superman pode ser um alien mais forte do que uma locomotiva e mais rápido que uma bala, mas ele é mais parecido com eu e você do que um bilionário igualmente brilhante em solucionar crimes e em artes marciais.

A diferença entre Clark e nós é que, um dia, ele descobriu que podia derrubar paredes. Superman de James Gunn entende isso, e por mais imperfeito que ele seja, essa compreensão – aliada ao quão aberto é seu abraço dos elementos de fantasia e ficção-científica dos gibis da DC – faz dele o início de uma nova era do cinema de heróis.

Se isso será suficiente para salvar a Warner Bros., para competir com o Marvel Studios ou para retornar o Homem do Amanhã ao centro da cultura pop, eu não sei. O que sei, porém, é que como filme, Superman conquista o direito de ser como Clark: bagunçado, divertido e especial. Ou, em outras palavras, humano.

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