Longe das escolas e sem futuro: crianças são vítimas esquecidas da violência no Haiti
Muitas escolas continuam fechadas por se encontrarem em áreas ocupadas pelas facções; outras acabaram se tornando abrigos
Porto Príncipe, Haiti – A última vez que Faida Pierre, de dez anos, foi à escola, sua mãe a encontrou no telhado do prédio, descalça e aos prantos, enquanto uma gangue invadia o bairro em que se situava, no centro da capital haitiana. Antes de o som dos disparos começar a se intensificar, indicando a aproximação dos homens, o diretor e os professores ligaram para os pais, pedindo que fossem buscar os filhos; a seguir, cada um correu para um lado e Faida ficou sozinha. “O pessoal entrou em pânico e começou a correr para fora, dizendo que os bandidos tinham atacado a região. Então pensamos em subir no telhado”, conta a menina.
Isso foi há um ano – e, como tantas outras entre 300 mil crianças no Haiti, a garota, que estava no terceiro ano, parou de estudar. Privadas de ensino e de perspectiva de futuro, elas são as vítimas ignoradas da violência que toma conta da nação: em situação de rua, famintas e muitas vezes alvo de recrutamento pelas mãos dos grupos armados dos quais fugiram.
Muitas escolas continuam fechadas por se encontrarem em áreas ocupadas pelas facções; outras acabaram se tornando abrigos, já que mais de um milhão, o que corresponde a praticamente 10% da população, teve de abandonar tudo durante a ocupação das comunidades pelos criminosos.
Depois do pico de violência que praticamente parou Porto Príncipe, em fevereiro de 2024, quase 15 mil famílias foram buscar proteção em prédios públicos e instituições de ensino, segundo o Unicef, ou Fundo das Nações Unidas para a Infância, que também monitora o número de crianças fora da escola.
Há as que continuam abertas, mas ali o problema é outro: os pais alegam que não podem matricular os filhos porque não têm dinheiro para as mensalidades, os uniformes ou o material. A maior parte estuda em instituições particulares, mas mesmo as da rede pública cobram uma quantia mínima que as famílias cuja casa e cujo negócio foram transformados em cinzas não têm mais condições de bancar. Ao mesmo tempo, milhares abandonaram Porto Príncipe em busca de segurança, sobrecarregando as instituições de diversas outras comunidades.
As escolas também têm de lidar com a queda drástica no número de funcionários e professores – segundo os dados oficiais, cerca de 25% –, muitos dos quais foram mortos ou deixaram o país.
Além da perda educacional, fora da escola as crianças, vulneráveis, têm grandes chances de engrossar os mesmos grupos armados que lhes infligem o terror. De fato, os especialistas calculam que metade do contingente é composto por menores.
Na província que inclui Porto Príncipe, 77 mil alunos do nono ano compareceram aos exames finais efetuados pelo governo no fim do ano letivo 2023-24, dez mil a menos do que no anterior, conforme informações do Ministério da Educação. Como resultado, a estimativa oficial é de que cerca de 130 mil jovens tenham saído do sistema, composto de 13 anos, no último período acadêmico – e não há condições ainda de fazer uma avaliação completa de quantos desistiram em 2025.
Faida pode não frequentar mais a escola, mas mora em uma. Faroline Parice, sua mãe, conta que, quando o pai da menina foi morto em uma das inúmeras investidas, as duas se juntaram às quase cinco mil pessoas que ocupam o Lycée Marie Jeanne. A reportagem visitou o lugar no fim do ano passado, e viu as duas dormindo ao relento, em um pátio lotado de mosquitos e água de chuva empoçada. “Às vezes, ela acorda no meio da noite chorando e me pergunta quando vai poder voltar a estudar.”
Em parceria com o Governo Federal, o Unicef oferece assistência financeira às famílias carentes, mas favorece aquelas cujos filhos estão matriculados e, por esse motivo, muitos pais afirmam não se qualificar. Bruno Maes, que recentemente deixou o cargo de diretor da organização no país, admitiu que não há verba suficiente para todos e previu mais desistências pela falta de assistência.
A situação se agravou ainda mais pelos mais de cem mil estudantes, a maior parte da capital, que se mudaram para o sul, onde a situação é relativamente calma – só que as escolas ali não têm condições de acomodar todo mundo. Muitos fugiram só com a roupa do corpo, sem certidão de nascimento, histórico escolar ou qualquer registro que prove em que ano estão.
“São muitos os fatores que afetam essas crianças: a falta de documentos, o impacto da violência que as obrigou a fugir, a falta de vagas e de condições financeiras para se bancar”, comenta Maes.