Com a iminência da gripe aviária, as lições de pandemias passadas ganham mais urgência
Problemas enfrentados com a Covid podem ser úteis na busca de soluções para lidar com a disseminação global de uma doença
Em 1918, um vírus da gripe passou das aves para os seres humanos e matou entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas em um mundo com menos de um quarto da população atual. Dezenas de mamíferos também foram infectados.
Agora estamos diante de outra investida da gripe aviária. Há anos, vem devastando populações de aves no mundo todo e, mais recentemente, começou a infectar mamíferos, inclusive gado, transmissão nunca vista antes. Em outro caso inédito recente, o vírus quase certamente passou de uma vaca para pelo menos um ser humano – felizmente, um caso leve.
Embora muito ainda tenha de acontecer para que esse vírus desencadeie outra pandemia humana, esses acontecimentos fornecem mais um motivo – como se fosse preciso – para que governos e autoridades de saúde pública se preparem para a próxima pandemia. Nesse processo, é necessário ter cautela em relação às lições que, segundo eles, a Covid-19 deixou para trás. Precisamos estar preparados para lutar a próxima guerra, não a última.
Duas suposições baseadas em nossa experiência com a Covid seriam especialmente perigosas e poderiam causar danos tremendos, mesmo que os formuladores de políticas percebessem seu erro e se ajustassem depressa.
A primeira envolve quem tem maior probabilidade de morrer em decorrência de um vírus pandêmico. A Covid matou principalmente pessoas com 65 anos ou mais, mas esse vírus foi uma anomalia. As cinco pandemias anteriores sobre as quais temos dados confiáveis mataram populações muito mais jovens.
A pandemia de 1889 é a mais parecida com a Covid (alguns cientistas, aliás, acreditam que foi causada por um coronavírus). As crianças pequenas escaparam quase intocadas; morreu sobretudo gente mais velha, mas as pessoas de 15 a 24 anos sofreram o maior índice de mortalidade excessiva, ou mortes acima do normal.
O vírus influenza causou as outras pandemias, mas, ao contrário das mortes por influenza sazonal, que geralmente mata adultos mais velhos, nos surtos de 1957, 1968 e 2009 metade das mortes (ou mais) ocorreu em pessoas com menos de 65 anos. A catastrófica pandemia de 1918 foi o inverso completo da Covid: bem mais de 90% da mortalidade excessiva ocorreu em pessoas com menos de 65 anos. As crianças com menos de dez anos foram as mais vulneráveis, seguidas por aquelas com idade entre 25 e 29 anos.
Qualquer presunção de que os idosos seriam as principais vítimas da próxima pandemia – como foi o caso na Covid – está errada, e qualquer política com essa premissa poderia deixar jovens adultos e crianças saudáveis expostos a um vírus letal.
A segunda suposição perigosa é que as medidas de saúde pública, como o fechamento de escolas e empresas e o uso de máscara, tiveram pouco impacto. Isso é incorreto.
A Austrália, a Alemanha e a Suíça estão entre os países que demonstraram que essas intervenções podem ser bem-sucedidas. Até mesmo a experiência dos Estados Unidos fornece provas esmagadoras, embora indiretas, do sucesso dessas medidas de saúde pública.
A prova vem do vírus influenza, transmitido como a Covid, com quase um terço dos casos transmitidos por pessoas assintomáticas. No inverno anterior à Covid, a gripe matou cerca de 25 mil pessoas nos EUA; naquele primeiro inverno pandêmico, as mortes por gripe foram inferiores a 800. As medidas de saúde pública tomadas para desacelerar a Covid contribuíram significativamente para esse declínio, e essas mesmas medidas, sem dúvida, também se refletiram na Covid.
A questão, portanto, não é se essas medidas funcionam, porque sabemos que funcionam. Trata-se de saber se os benefícios superam os custos sociais e econômicos. Esse cálculo terá de ser feito continuamente.
Essas medidas podem moderar a transmissão, mas não podem ser mantidas indefinidamente. E nem mesmo as intervenções mais extremas conseguem eliminar um patógeno que escapa à contenção inicial se, como os vírus que causam a gripe e a Covid-19, ele for transportado pelo ar e transmitido por pessoas que não apresentam sintomas. No entanto, essas intervenções podem ter dois objetivos importantes.
O primeiro é evitar que os hospitais sejam sobrecarregados. Para alcançar esse resultado, pode ser necessário um ciclo de imposição, suspensão e reimposição de medidas de saúde pública para desacelerar a disseminação do vírus. Mas é bastante provável que o público aceite essas medidas, pois seu objetivo é compreensível, restrito e bem definido.
O segundo objetivo é retardar a transmissão de modo a ganhar tempo para identificar, fabricar e distribuir tratamentos e vacinas, e para que os médicos aprendam a administrar o atendimento com os recursos disponíveis. A inteligência artificial (IA) talvez seja capaz de extrapolar, a partir de grandes quantidades de dados, quais restrições proporcionam mais benefícios – por exemplo, se o simples fechamento de bares seria suficiente para reduzir significativamente a disseminação — e quais impõem o maior custo.
A IA também deve acelerar o desenvolvimento de medicamentos. E o monitoramento de águas residuais pode rastrear os movimentos do patógeno, possibilitando limitar os locais onde as intervenções são necessárias.
Ainda assim, o alcance dessas ações vai depender da gravidade e da transmissibilidade do patógeno e, como infelizmente aprendemos nos EUA, da capacidade dos líderes de divulgar as metas e as razões por trás delas.