“O Filho de Mil Homens” monta com delicadeza um retrato dos frutos da violência
Daniel Rezende faz filme claramente passional a partir de livro de Valter Hugo Mãe

A primeira hora de O Filho de Mil Homens dá a impressão que o filme, dirigido e escrito por Daniel Rezende (Turma da Mônica: Laços) a partir do livro de Valter Hugo Mãe, vai abraçar um formato antológico.
Começamos com um pescador caladão, Crisóstomo (Rodrigo Santoro), adotando o órfão Camilo (Miguel Martines); passamos por Francisca (Juliana Caldas) sofrendo preconceito por seu nanismo em uma vila minúscula do litoral, especialmente quando se descobre que ela está grávida; chegamos a Antonino (Johnny Massaro), um rapaz homossexual oprimido pelo fervor religioso da mãe e a violência dos outros homens do local onde mora; e por fim aterrisamos em Isaura (Rebeca Jamir), que é empurrada para um casamento de conveniência pela mãe (Grace Passô) mesmo após sofrer abuso nas mãos do futuro marido.
Às vezes, Rezende nos deixa entrever os personagens de uma história no fundo das cenas de alguma outra, e há a noção básica de que todas elas se passam no mesmo local, além de uma conexão temática óbvia sobre os ciclos de violência perpetuados em certos sistemas sociais. O pulo do gato, no entanto, vem só depois – a segunda hora de O Filho de Mil Homens surpreende ao subverter o formato da primeira para encaminhar cada uma de suas narrativas para um potente clímax em comum.

É uma estrutura que demanda paciência do público, um refrão que pode ser repetido algumas vezes quando se trata deste filme. Isso porque Rezende, dedicado ao espírito da obra original, faz de O Filho de Mil Homens mais uma fábula melancólica do que um drama social direto. Este é um longa de poucos diálogos, de encenações que privilegiam movimentos vagarosos, registrando sempre a hesitância dos personagens em falarem-se, tocarem-se, revelarem-se uns para os outros. A ideia é não só privilegiar a construção dos atores, mas também criar um clima intoxicante, comprometido o bastante consigo mesmo para que o público embarque no seu ritmo.
A boa notícia é que, na maior parte do tempo, funciona. Fundamental para isso, por exemplo, é a decisão de recrutar o sempre brilhante diretor de fotografia Azul Serra (Homem com H, Boca a Boca) para construir um universo visual em que severidade e beleza caminham de mãos dadas. O Filho de Mil Homens, gravado em locações de Búzios (RJ) e da Chapada Diamantina (BA), registra como poucos filmes antes dele o caráter intimidante das rochas negras estilhaçadas de uma parte do litoral brasileiro, a brisa forte chicoteando construções, levantando poeira do chão, se chocando contra os corpos humanos.

Dentro desse mundo, o ritmo imposto por Rezende parece mais natural. O silêncio se impõe como necessidade diante da enormidade da natureza, e O Filho de Mil Homens vai assim abrindo feridas profundas, geracionais, com uma delicadeza que lhe cabe bem. Claramente apaixonado pelo material que tem em mãos, o cineasta o trata com reverência, mas também uma vontade intensa de traduzi-lo para um público que ainda não teve acesso a ele. Rezende crê que essa seja uma história importante de se contar, e toma todo o cuidado para contá-la de forma íntegra e envolvente.

Isso se estende também, é claro, para a direção dos atores. Rodrigo Santoro é um aliado importante para O Filho de Mil Homens, porque aplica a Crisóstomo uma linguagem corporal que poderia se mostrar caricata em outros contextos, mas aqui se encaixa como uma luva. Empoleirado perfeitamente entre a ingenuidade interiorana e a sabedoria adquirida a custo, ele equilibra com leveza as abordagens mais tradicionalmente teatrais de seus principais colegas de elenco, Johnny Massaro e Rebeca Jamir, que por vezes (ele, até mais do que ela) parecem entrincheirados na miséria de seus personagens.
O Filho de Mil Homens não é um melodrama, no entanto, e sim um conto de fadas. Em cada um dos muitos momentos nos quais o filme é bem-sucedido em nos seduzir para entendê-lo dessa forma, ele faz valer a pena a paciência que demanda do espectador.



