Política Nacional

“Denúncia contra Bolsonaro é descritiva e técnica, sem paixões políticas”, diz Cazetta

Ele leu as 270 páginas da denúncia protocolada pela PGR no STF contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e 33 aliados por montar uma trama golpista e faz elogios pela qualidade técnica da peça

A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), desde 1988, defende a lista tríplice para escolha do procurador-geral da República. O presidente Lula, no terceiro governo, rejeitou esse critério, adotado nos dois primeiros mandatos e seguido pela sucessora, Dilma Rousseff, e escolheu Paulo Gustavo Gonet Branco para chefiar o Ministério Público, com a prerrogativa que a Constituição lhe assegura.

O presidente da ANPR, Ubiratan Cazetta, diz que a lista tríplice continua a ser uma bandeira da entidade, mas, na avaliação dele, Gonet é respeitado e vem fazendo um bom trabalho.

Cazetta leu as 270 páginas da denúncia protocolada pela PGR no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e 33 aliados por montar uma trama golpista e faz elogios pela qualidade técnica da peça.

Para Cazetta, ao contrário do que muita gente pensa, o STF não tem uma decisão final sobre o destino de Bolsonaro e, apesar do trabalho minucioso de Gonet, a defesa do ex-presidente será feita com a qualidade de bons advogados, e o jogo nas ruas, convocado por bolsonaristas, não vai influenciar.

Veja a entrevista

  • Como o senhor avalia a denúncia do procurador-geral da República, Paulo Gonet, contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e outras 33 pessoas, por montarem uma trama golpista para atentar contra a democracia?

A denúncia é essencialmente uma peça descritiva e técnica. Se eu tivesse que resumir, a minha opinião é de que é uma denúncia extremamente bem feita, cuidadosa nos seus termos, porque evitou entrar na discussão política. Não faz ilações, não faz julgamentos nesse sentido, simplesmente descreve. Se vai haver condenação ou não, vai depender da confirmação das provas. Porque nós temos uma parte das provas que são obtidas por acordo de colaboração premiada, mas elas nunca são usadas exclusivamente com base no acordo. Elas são sempre corroboradas por documentos ou por um conjunto de fatores. Nós teremos que ver se esse conjunto de fatores se confirma, se os depoimentos se mantêm.

  • Nesta denúncia, a impressão é de que um fato isolado não seja indicativo de um crime, mas a junção de vários fatos revela uma trama. É isso? 

Uma imputação como essa, de você ter uma atuação para o rompimento do Estado Democrático de Direito não ocorre em um dia. São atos que vão se somando. Vai criando ambientes para que esses fatos ocorram, um espaço para que o estado de exceção seja possível. Especialmente, você vai trabalhar não um golpe de simplesmente colocar tanques nas ruas, mas sim colocar esse ambiente dentro de uma pretensa manifestação popular ou como decorrência de uma insurgência popular. Então, é por isso que quando você tem uma descrição como essa da denúncia, de fato, você tem que pegar e ir somando tudo o que vem sendo feito. E a base da acusação é exatamente essa: não foram fatos isolados. São fatos que vieram criando uma discussão sobre alguma pretensa falta de confiabilidade no sistema eleitoral. Então, essa denúncia vem exatamente nesse sentido. O fato não começou e terminou em 8 de janeiro. Você tem um processo muito anterior, que foi criando um ambiente de contestação ao resultado das urnas. Toda essa estrutura poderia, num determinado contexto, ter levado ao rompimento da democracia. Não ocorreu. A hipótese da denúncia é de que não ocorreu porque faltou essencialmente o apoio do alto comando do Exército.

  • Até que ponto a delação do Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, é fundamental nesse processo? 

Se há algo que pode ser demonstrado na denúncia é que todas as vezes em que se referem aos depoimentos do Cid, obtidos em delação premiada, os argumentos não estão sozinhos. Eles são somados a outros elementos de prova, como documentos apreendidos. Não é só o que o delator entregou, mas sim fatos que foram confirmados com documentos. Então, a delação faz parte de uma descrição dos fatos, mas não é a única base do caso. Agora, a questão é saber: por que se discute uma possível anulação? Há quem diga que o delator sofreu tortura psicológica, mas não há nenhum elemento de prova que indique isso. A tortura psicológica pode existir, no sentido de pressão para uma colaboração, mas sempre que há um acordo – seja na esfera criminal ou entre duas partes em uma negociação – as pessoas cedem direitos porque têm medo de punições.

  • Ainda de acordo com defensores de Bolsonaro, a afirmação é de que não houve crime porque a trama não foi executada…Eles desistiram, não ocorreu. Isso não livra de uma condenação?

Esse é um dos temas mais difíceis do direito penal, que é entender quando começou a ação ou não. O que interessa para o direito penal é essa questão: a ação se iniciou, sim. Alguns crimes, além da ação iniciada, exigem um resultado. No caso desse crime, ele exige apenas o início da execução. Se eu estou na fase que, no direito, é chamada de fase da cogitação, mas fico só nisso, não falo com ninguém, não pratico nada, isso é mero pensamento, não é nada que teve um início de execução. Aqui, não. Os atos foram sendo praticados, foram criando um ambiente, a ponto do que a denúncia descreve, que um comandante de uma das forças tenha dito: “Eu participo desse processo.” E os outros dois tenham dito: “Não.” Aqui não é uma desistência. Há diferença entre desistência e não conseguir levar a cabo tudo o que se queria.

  • O Ministério Público, titular da ação penal, nesse caso, foi coadjuvante?

Eu não diria isso, sinceramente. Primeiro, a gente tem que entender um pouco as investigações originárias no STF. O fato é que tem uma presença maior do próprio relator ou dos seus juízes auxiliares, mas sempre com a presença do Ministério Público. Eu não gosto da expressão “narrativa” porque ela está na moda, mas nesse sentido é um pouco narrativa dizer que o Supremo não tem capacidade técnica para julgar esse processo.

  • O Supremo é vítima…

Não há brasileiro que não possa ser dito como vítima dessa trama

  • Mas ministros do Supremo foram, inclusive, ameaçados de morte…

É uma ameaça à vida. Essa é uma discussão importante mesmo, que tem que ser travada. E aí está a vantagem da decisão colegiada. O papel de um dos ministros, o ministro Alexandre, especialmente, é importante. Mas não é a palavra dele que é a palavra final. Você vai ter que ter um processo. Cada um dos ministros vai ter que colocar em seu voto como é que enxerga a prova daqueles fatos, como aqueles fatos estão concatenados. Isso tudo é público. Se a sessão deve ser presencial, é lida, é debatida.

  • A estratégia da defesa tem sido trabalhar com as paixões. A mobilização popular atrapalha?

Para dentro do Supremo, não sei se piora. Acho que, em princípio, ela é anódina. Ela já era esperada. Não há dúvida, no Supremo, de que isso ocorreria. Ela tem um efeito muito mais externo, muito mais político, até de construção de cenários eleitorais. Mas a defesa será técnica. O ex-presidente tem advogados de ótima qualidade e certamente tentarão, tecnicamente, desfazer os elementos de prova que estão ali. Essa é a defesa que interessa.

  • Muita gente acha que o Supremo já decidiu…

Quem lida com o processo penal sabe que, ainda que se inicie com uma intuição, essa intuição tem que se confirmar. Eu tenho que, depois de todo o trabalho, ter condições de sustentar aquela minha intuição inicial. Durante o contraditório, há novas testemunhas, novas defesas. Se elas tiverem importância, necessariamente, eu terei que olhar para minha intuição e falar: “Olha, isso estava errado. Ainda que se tenha essa impressão de que “o Supremo já decidiu”, isso não é verdadeiro.

  • Na Lava-Jato, muitas condenações foram anuladas pelo argumento de que havia um conluio entre o Ministério Público e o juiz Sergio Moro. Essas condenações foram, inclusive, confirmadas em segunda instância e no STJ. Agora vemos também uma participação muito grande do ministro Alexandre de Moraes. É possível fazer um paralelo sobre os dois processos?

Acho que são duas situações diferentes. O Supremo decidiu em relação à parcialidade com uma afirmação de que, durante o processo, o juiz orientava a acusação a fazer determinadas coisas já combinadas para que ele tomasse uma decisão. Não vou nem entrar no mérito do quanto isso é verdadeiro ou não, se isso vale para todos os processos ou se apenas para um processo. É uma discussão que a gente precisa ter, inclusive. Eu acho que a Lava-Jato é um capítulo da nossa história que precisa ser tirado das paixões e identificado: “Isso aqui foi um erro, isso foi um acerto, isso foi um erro de primeiro grau, isso foi um erro do tribunal, isso foi um erro do Supremo.

  • A postura atual do ex-procurador Deltan Dallagnol muito crítica em relação ao atual governo e sempre em defesa das teses bolsonaristas confunde mais a cabeça das pessoas em relação a uma suposta parcialidade na Lava-Jato?

Um dos problemas para nós, do Ministério Público, é que ele ainda é visto como sendo um membro do Ministério Público. Mas ele não é mais. Ele assumiu um outro papel. É legítimo. O fato é que hoje ele ocupa um campo diferente, que é o campo da política. O problema é que ele formou a sua imagem como membro do Ministério Público. E o membro do Ministério Público certamente não pode ter essa postura.

  • Uma decisão de um ministro do Supremo anulando as condenações do Palocci, como aconteceu recentemente, no meio de uma denúncia contra Bolsonaro, é no mínimo uma coincidência ruim?

Mas não se pode também esperar para tomar decisões depois que o ambiente melhora. A questão é: essa decisão tinha fundamento? O que há por trás? O que, efetivamente, é verdade? Boa parte dessas anulações no âmbito da Segunda Turma ainda está pendente de recursos que o procuradorgeral da República fez para discutir.

  • A ANPR sempre defendeu a lista tríplice para o PGR. Dessa vez, o presidente Lula fez uma nomeação direta. Vocês estão satisfeitos com o procurador-geral?

São dois fatos distintos. Nós temos, ideologicamente, uma defesa histórica de que o processo de escolha do procurador-geral da República deve ser idêntico ao processo dos demais procuradores-gerais dos estados. No processo da lista tríplice, os nomes são levados ao chefe do Executivo. O que isso traz? Transparência ao processo e uma capacidade maior de diálogo. Queremos os mais qualificados. Essa ideia continua válida. Sempre foi válida e é defendida pela ANPR desde 1988, quando foi discutida na Constituição. E lá, na época, foi dito que não passaria assim. Mesmo nas escolhas do ex-procurador geral Aras, isso era assim. A diferença é que o Aras não apenas foi escolhido fora da lista, mas colocou em dúvida a seriedade da escolha, alegando que a lista era fraudada, que havia um sistema de anarquia, um sindicalismo. Então, havia um confronto dele com essa ideia, o que, obviamente, gerou uma reação. O atual procurador-geral da República nunca se comprometeu, nem como acadêmico, nem como membro da instituição, com a ideia da lista tríplice. A escolha do procurador-geral, Paulo Gustavo Gonet Branco, foi aceita pela classe, como todas as outras foram. E ele tem feito uma excelente gestão. Isso quer dizer que vamos parar de defender a lista tríplice? Não. Pelo contrário.

Fonte: Correio Brasiliense

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