Um escritor amargo que tinha uma biblioteca de nome terno e poético
Lima Barreto deu à sua biblioteca o nome de Limana, substantivo próprio que é quase uma música de um só acorde e significa pertencimento

Lima Barreto era um homem difícil, cáustico, magoado, ressentido, sofrido, solitário, briguento, provocador, extremamente lúcido, escrevia em português brasileiro quando isso era um acinte para a bolha literária.
O criador de “Triste fim de Policarpo Quaresma” e “Isaías Caminha” via as coisas do Brasil com a crueza necessária para mostrar o que se tentava esconder, disfarçar, embranquecer.
Lima Barreto viveu pouco, só até os 41 anos, mas escreveu muito, polemizou outro tanto, publicou romances e contos (além de crônicas) que estão em qualquer lista dos clássicos da literatura brasileira, deu voz à periferia, tirou a casca do racismo brasileiro e deixou a ferida sangrar. Escreveu sem academicismo, deu voz à sua própria voz e a dos seus. Lima Barreto brigou com meio mundo, até com Machado de Assis, não exatamente com o escritor, mas com o fundador da Academia Brasileira de Letras.
Passou por hospícios pra tentar se livrar do alcoolismo, não se casou, não deve ter tido filhos, se namorou foi muito pouco.
O filho da professora Amália com o tipógrafo e depois almoxarife João tinha uma biblioteca em casa, um cômodo que servia de quarto, escritório, refúgio, sossego. E aí vem a coisa mais terna e doce do amargo escritor que dizia ter a alma de um bandido tímido: ele deu à sua biblioteca o nome de Limana, substantivo próprio que é quase uma música de um só acorde, um poema de uma única palavra, o nome de uma fruta mais o sufixo “na” que tem o sentido do pertencimento.
Romana, de Roma, Americana, da América, Machadiana, de livros de e sobre Machado de Assis, Limana, de Lima Barreto. Lima é nome de uma fruta cítrica, ácida e levemente adocicada. Limana é nome feminino, terno, poético.
Numa casa do subúrbio de Todos os Santos, zona norte do Rio de Janeiro, moravam o pai de Lima, o também sofrido João Henriques de Lima Barreto, e os quatro filhos, Afonso, Evangelina, Carlindo e Eliézer. A mãe deles, a professora Amália, morreu jovem, aos 25 anos, de tuberculose. Era filha de escrava alforriada que engravidou, ao que se supõe, de um senhor de escravos, do mesmo modo no qual acabou por surgir o que chamamos de civilização brasileira.
A casa tinha janelões voltados para a rua. Quem passasse na calçada e quisesse assuntar podia ver um cômodo com as paredes cobertas de livros, o que causava certa estranheza, uma admiração confusa – quem naquela casa leria todas aquelas letras? Há quem diga que eram em torno de 700 ou 800 obras, entre livros, revistas, recortes de jornais e manuscritos do autor.
Quando estava em casa, na volta das redações de jornal e das confeitarias e botecos do centro do Rio de Janeiro, Lima se refugiava na Limana. Gostava e cuidava tanto dela que fez um ex libris, como era de costume à época entre os muito letrados. Ex libris, pra quem não sabe, era uma espécie de selo com o qual os donos carimbavam seus livros para indicar a quem eles pertenciam. Um marcador social de letramento. Por certo haverá até hoje quem os tenha.
O do Lima foi desenhado por um talentoso artista plástico português chamado Correia Dias que veio para o Brasil em 1914. E que, entre muitos outros feitos, desenhou a capa dos livros da poeta Cecília Meireles, com quem se casou (um amor que resultou em três filhas e uma tragédia, Dias se suicidou).
Mas é de uma palavra linda que trata esta crônica, Limana. A certa altura, Lima decidiu inventariar a Limana. Anotou nome por nome os livros e os manuscritos que ela continha.
É de se surpreender que mais da metade das obras de um dos mais nacionalista dos romancistas brasileiros fosse em francês, idioma que o menino criado no subúrbio aprendeu sozinho lendo livros, revistas e consultando dicionários. Mas Lima não fugia à regra: naquela travessia de século, o Brasil ainda bebia na fonte da literatura e do pensamento francês.
Habitavam a Limana, entre tantos outros, Rousseau, Voltaire, Balzac, Flaubert. Havia brasileiros, claro. Machado, Joaquim Nabuco, Aluísio Azevedo, Raul Pompéia, Coelho Neto. Lá estavam também os ingleses (Shakespeare), os russos, por óbvio (Dostoiévski), os portugueses (Camões), espanhóis (Cervantes) e, incrível, entre os alemães, Karl Marx, o que não significava que Lima fosse comunista, apenas que tinha vontade de saber das coisas do pensamento e da inteligência, onde quer que elas estivessem.
Lima tratava os livros de igual para igual. Fazia anotações nas margens das páginas, emprestava-os aos amigos. Mas a biblioteca, o conjunto das obras que ele começou a juntar desde muito jovem, era um corpo único: “Minha Limana cresce lentamente, como as barbas de um pobre-diabo”, ele escreveu, com afeto e certa comiseração. Limana era Lima, Lima existia em Limana. Entrava em casa e ia direto para dentro dela.
A atmosfera doméstica era tensa: o pai de Lima, o tipógrafo João Henriques de Lima Barreto que depois virou almoxarife de hospício, padecia de distúrbios mentais que foram se agravando com o tempo. Pai e filho morreram com uma diferença de 48 horas.
O filho morreu na Limana, repentinamente, recostado na cama lendo a revista francesa Revue des Deux Mondes. O corpo de Lima estava muito maltratado pelo alcoolismo. A alma, não menos ferida, clamando sempre por reconhecimento, gritando sempre contra o triste destino dos negros no Brasil e a indiferença burguesa ao flagrante racismo que ele conhecia na pele, nos traços, no cabelo, nos desprezos constantes.
Com a morte de Lima Barreto, a Limana foi doada ao arquiteto José Mariano Filho, que havia algum tempo tinha se aproximado do escritor e o defendido publicamente em várias ocasiões. Mariano pagou as despesas do sepultamento de Lima e, em agradecimento, a família do escritor doou a Limana para o arquiteto que a levou para sua chácara em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. E ali Limana ficou esquecida por muito anos até que alguém dela se lembrou, mas a essa altura as traças e o mofo já tinham devorado boa parte das obras. O que restou está na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.
Não conheço nome mais lindo para uma biblioteca, Limana.